Saturday, May 06, 2006

Dia -194

Como à espera do comboio...
...baixinho. Sem gritar.
Quando gritar contra o silêncio do comboio nos carris
é a única coisa que apetece.
Gritar contra esse silêncio.
Experimentar um grito. Assim.
Não gritar para que o homem dentro do comboio ouça.
Talvez para que não ouça.
Nem veja.
Porque já nem (ver) quer.
E o comboio aproxima-se sobre os carris.
Silêncio.
É um comboio exacto. Desta vez.
Aproxima-se.
De uma estação agora triste.
Como o Verão.
E quem vem dentro do comboio sabe.
Que parará na estação exacta.
E não. Coisa tão improvável. Mas já acontecida.
Numa paragem de autocarro.
Há uma mulher na estação exacta.
Parada. Como no Inverno.
Uma mulher cheia de frio.
Uma mulher perfeitamente inexacta.
Perfeitamente banal.
Que sabe que todos os seus gestos.
Não mudarão nada.
Há este sol brutal. Como ao meio-dia.
Há este frio inexplicável.
Como na madrugada.
Nem já os olhos serão exactamente verdes.
Nem já a pele exactamente faminta.
Nem já a voz exactamente música.
Nem já as mãos exactamente cheias.
Há esta solidão desamparada.
Como a solidão que deve haver na morte.
Dos que amaram.
Exactamente.
O verde de um olhar.
Exactamente.
A fome de uma pele.
Exactamente.
A música de uma voz.
Exactamente.
A plenitude de umas mãos.
Há esta mulher inexacta.
Quase inexplicável.
Que é já uma mulher qualquer.
À espera de um comboio.
Onde um homem exacto.
E (ainda) único.
Virá.
Para se transformará em memória.

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