O Abel
Eu teria 14 anos, 14 para 15 anos. O Abel 17 para 18. Lembro-me de um dia, longe de casa. Da minha. Mas demasiado perto da dele. Eu tinha uma t-shirt vermelha, e umas calças de ganga, rotas. Eu tinha uma trança enorme, com um laço na ponta. Foi o meu avô Alberto que me colocou o laço na ponta, nesse, como nos outros dias em que eu estava longe de casa. O meu avô Alberto gostava da minha trança. Talvez fosse o que ele mais gostava em mim. Da minha longa trança. Dizia o meu avô que não havia trança mais bonita e que uma trança assim tinha que ter um enorme laço a rematá-la. E colocava-me o laço. Orgulhoso dos meus cabelos. Mais que eu. Que achava horrível ter 14 para 15 anos e uma trança daquelas a cair por mim abaixo. Mas o Abel também gostava da minha trança, se bem que admirasse mais as minhas mamas. 17 anos. Hormonas a saltar dentro dele todo. E eu era uma miúda gira. Ou seriam as minhas mamas que eram. Já não sei. Apesar da trança. Desculpa avô Alberto. Mas eu só comecei a gostar da minha trança no dia em que fiz 18 anos e rapei o cabelo. E. de repente, senti a falta da trança e da tua mão a pôr-me o laço. Mas tu isso já não soubeste. Já tinhas morrido e nunca mais ninguém se tinha interessado se a minha trança merecia um laço ou não. Mas o Abel, naquele dia, sentados ambos no degrau da casa dele atirou-me do fundo dos olhos verdes: tu queres namorar comigo? E eu fiquei a remexer na trança e a olhar para ele como se nunca o tivesse visto e pensei de mim para a minha trança: mas o que é que este quer? Quer dizer, não era a pergunta a novidade. Eu disse que era uma miúda gira. Apesar da trança. Ou por ela. Ou mesmo pelo laço. Era o Abel a fazer-me a pergunta, a novidade. Na verdade, se fosse hoje saberia porque é que não lhe respondi logo e o deixei pendurado como a trança, na resposta. Mas isso era hoje. Naquele dia, a só pensei o que é que este gajo quer? Na verdade, não sabia o que é que ele queria. Apesar das hormonas. Aos saltos. Bom, mas isso é o que querem todos e o que depois dele todos quiseram, de facto. E está bem. Eu também quero e também quis. Sem nenhuma excepção, ao que me lembro. Mas o que ele queria era ensinar-me coisas. E ensinou-me todas essas coisas das hormonas. Dos saltos. Dos livros. Da erva. Da distância sem sentido. Do querer até não poder mais e de poder tudo. Até querer. Ensinou-me a trair. Delimitou-me as estradas que haveria sempre de seguir. O Abel foi assim uma espécie de mapa sem cidades, só com caminhos. Quando o deixei um dia qualquer, muitas hormonas depois, muitos livros a seguir, muitos charros entretanto, muitas bebedeiras adiante, muitos sentidos desvendados, muitas traições bem cumpridas, no meio de um centro comercial lisboeta apinhado de gente... quando o deixei depois de lhe ter dito 'venho já'. Quando nunca mais lhe atendi o telefone. Adiante. Tinha o mapa das estradas traçado. O meu. Nunca foi muito diferente depois disso, a não ser que, outras vezes, foi também a mim que me deixaram pendurada na vida, sem o letreiro 'volto já'. Ou que não me atenderam o telefone. Mas os caminhos estavam traçados. E por acaso segui-os. O padrão que havia de seguir e errar e seguir e errar e errar e seguir. Adiante. Depois. Estava traçado. Para além disso, a única coisa que restou do Abel, de mim, da minha trança e do laçarote que me punha nela o meu avô Alberto, ainda é visível. E permanece. Está cravada, em letras monumentais, numa parede ao pé da casa dele (demasiado longe da minha, para que me alimente o ego) 'Amo-te B.' A B. sou eu, bem entendido.
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