Wednesday, March 14, 2007

Dia -504

Mensagem
(para uma pessoa que nunca saberá quem é e fica triste com isso, não sei porquê)
Odeio este tempo detergente
um tempo português que até utilizou
os primeiros acordes da quinta sinfonia de beethoven
como indicativo da voz do ocidente
chamada actualmente a emissão em línguas estrangeiras
um tempo que parou e só mudou
o nome que puseram num mundo que muda
a coisas que afinal permaneceram
um tempo português que alguma vez até em camões vê
o antecessor e criador de coisas como a nato
com a profética visão de quem consegue conceber tal obra
bem pouco literária por sinal e só possível graças à visão
de quem com um só olho vê as coisas quatrocentos anos antes.
Odeio este meu tempo detergente
de uma poesia que discreta até se erótica antigamente
hoje se prostitui numa publicidade
devida a algum poeta público que a certo detergente
deu de repente esse teu nome musical de musa
a ti precisamente a ti nesse teu rosto sorridente
onde o poeta público publicitário porventura viu
sobressair teu riso nesse território de alegria
e a brancura mais alva nesses dentes alvejar.
E eu que faço eu aqui em todo este tempo detergente quando
sinto subitamente cem saudades tuas
que posso que não seja odiar mais um meio que jamais
tentaria impedir evitaria um tempo que consente até contente
que faças dentro em pouco um ano mais
um meio onde nem mesmo eu mulher afinal sei
que terei de fazer para deter ao menos um momento essa tua
idade
a tua juventude se possível anos antes de haver-te conhecido
por acaso e já tarde na cidade onde nasceste
cidade que unamuno diz viver morrer apenas por amor
amor morto ou mortal mas amor imortal
cidade solidão as ruas muita gente os sons o sol
difusos e confusos corredores de uma faculdade
folhas que se renovam rostos que outros rostos
tão firmes tão presentes permanentes um só ano antes
friamente destroem sem deixar sequer
ao menos uma marca nessa fria impassível pedra
o tempo os sóis dos séculos cingindo os cintos da cidade
dessa cidade onde o povo morre novo à volta
do mesmo monumento destinado a exaltá-lo
cidade onde afinal a paisagem é pretexto para o homem
cidade portuguesa ó portugal ó parte da hispânia maior
maneira triste de se ser ibéria onde
da terra emerge o homem que depois o rosto nela imerge
ó portugal dos pescadores de espinho
espinho do suicida laranjeira espinho praia
antiga amiga e conhecida de unamuno
a praia dos seus últimos passeios portugueses
angústia atlântica e odor ó dor olor a campo
praia que só existe quando alguém a veste
coisa que foi somente quando tu mulher a viste.
Aqui em portugal aqui na vasta praia portuguesa
aqui nasci e ao nascer morri
como morri a morte que por sorte sempre tive
pesadamente do mais alto do meu peso dos meus anos
em cada um dos sítios onde um dia estive.
Aqui tive dezasseis anos aos dezasseis anos
aqui só vejo pés há muitos anos já.
Aqui o meu chapéu de chuva mais ao sul aceita em chapa
o sol
chapéu que fecho quando fecha o sol definidor do dia.
Tive um passado agora inacessível um passado
tão alto como a torre do relógio da aldeia
que pontual pontua a passagem do tempo
um tempo não ainda detergente um tempo
afinal só visível no sensível alastrar da sombra
ao longo desse pátio só possível ao adolescente
que mais tarde e mais só e de maneira mais sensível
mais só se sentirá no meio da imensa gente
que se sentia ali entre a andorinha e a nespereira.
Não o sabia então mas dominava um mundo
esse mundo que espero que me espere um dia ao fundol
á quando findo o dia sob o chão me afundo e ao final
em terra e em verdade é que me fundo.
Mas eu aqui completamente envolto neste tempo detergente
é da segunda-feira e da semana que preciso pois
posso lutar melhor por uma luz melhor
do que esta luz do mar à hora do entardecer.
É da cidade é da publicidade é da perversidade
que preciso e não tenho aqui na praia.
Não tenho nem o mar nem tão rudimentar
a técnica de olhar alguém as minhas mãos
para me devassar a vã vida privada.
É de inverno é domingo estou sozinho aqui na praia
regresso a casa à noite apanho eu próprio a roupa no quintal
e tenho a sensação de quem alguma coisa
faz pela primeira e sente bem ou mal
que tarde toma agora o seu banho lustral .
Ruy Belo - Odeio este tempo detergente

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